quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Riso dos Deuses: a concepção do Riso na Antiguidade Clássica (Parte III)


MORRER DE RIR: AS RELAÇÕES ENTRE O RISO E A MORTE

        “O riso e a morte fazem boa mistura. É suficiente olhar um crânio para se convencer: nada pode roubar-lhe o eterno sorriso.” (Minois,p.29)

            Muitas pessoas acham, no mínimo, estranho a associação entre o riso e a morte. Logo o riso! Símbolo da vida e da felicidade. Então, porque rir da morte? Nos mitos gregos, o riso alegre é permitido apenas aos deuses. “Nos homens, nunca é alegria pura; a morte sempre está por perto.” (Minois, p.27).


            Há relatos feitos por Heródoto na região da Trácia que “saúda-se os nascimento com lamentações, porque se considera que a vida é um mal, e morre-se rindo.” (Ibdem,p.27).
            George Minois (2003) ainda afirma que,

           “ Outros contam a mesma coisa a propósito da Sardenha, as vítimas sacrificadas ao deus lídio Sandon devem rir, assim como os fenícios quando sacrificam seus filhos.” (p.27).

            Este riso demonstrado pelas vítimas sacrificais revela que para os povos antigos o rir era um ato mágico, de transcendência que anunciava uma passagem. Rir para uma nova vida mostra, portanto, o consentimento das vítimas para o ato do sacrifício. Inúmeros são os relatos e as versões deste riso mortal espalhados no mundo antigo.
            Há entre os antigos o que chamamos de “riso sardônico”, espécie de riso inquietante. É um riso que provoca desconforto, mal-estar. As origens deste termo são um quanto obscuras. Sabe-se, porém, que o sardônico é originário da Sardenha, quanto às suas versões, essas são inúmeras. A versão mais difundida era a lenda de Talos, o homem de bronze, que saltava com suas vítimas no fogo, que quando estavam sendo queimadas contraíam a boca dando a impressão que estavam rindo daquilo tudo. Outra causa para este riso funesto também são os espasmos provocados nas vítimas de envenenamento de uma determinada erva da região Sardenha, relatada por Selênio no século III da era cristã.

“A mesma localização é atribuída à história célebre de Falaris, tirano de Agripeno que mandava matar suas vítimas encerrando-as num touro de bronze, que era aquecido lentamente. O rosto torcido de dor parece rir de sua própria morte.” (Minois, p.28)

            Além de ser ligado aos sacrifícios da região Sardenha, o riso sardônico também poderia se empregado em momentos de sarcasmo. É aquele riso que surge em momentos de cólera, de vingança, que nos faz rir com o canto da boca. “O aspecto agressivo é realçado pelo fato de que a contração dos músculos da boca mostra os dentes, como ressalta Hipócrates, que aproxima isso do riso de loucura.” (Minois, p. 28). 
            Mas porquê o riso é um ingrediente essencial para a maioria dos ritos de sacrifício e antecedem a morte? Há “complementaridade entre o riso e a agressividade. O riso coletivo, de alguma forma, prepara o abandono da violência, ele a desarma.” (2003, p.35).
            Georges Minois, citando Konrad Lorenz :
“Para ele, o riso é uma ritualização do instinto de agressão que existe em cada um de nós; ele permite controlar e reorientar nossas tendências naturais para a brutalidade, a fim de tornar possível a vida social.” (2003, p.35).

            Neste sentido, o riso pode ser considerado uma expressão da agressividade animal, de forma mais “civilizada” e simbólica.
            A agressividade ligada ao riso grego pode ser perfeitamente ligada aos bacanais realizados em homenagem ao deus Dionísio. Tradicionalmente a figura desse deus grego está ligada à alegria e embriaguez de viver. Mas ele seria representante apenas das forças “alegres” da vida? É prática muito comum fazermos da figura de Dionísio a do vinho. Mas essa embriaguez dionisíaca não está ligada ao álcool do vinho o excesso de seu consumo. Para René Girard, citado por Minois, a embriaguez de origem é o “furor homicida”.  “Seus atributos ligam-se à violência, que preside os desastres, e o divino Tirésias faz dele o inspirador do terror e do pânico.” (2003, p.35).
            Os primeiros festivais teatrais surgidos na Grécia eram em honra a Dionísio dão prioridade à tragédia, mais do que à comédia. Desta forma não estamos em um paradoxo?Porque a tragédia que nos remete a coisas tristes era dedicada ao suposto deus da alegria?Não deveria ser o contrário?Ser a comédia prestigiada nesses festivais? Essas questões nos mostram o quanto é ambígua a figura dionisíaca dentro da religião grega. Para aliviarem as tensões causadas pelas tragédias apresentadas, sempre era apresentada uma peça mais alegre, o drama satírico.

“A peça é animada por um coro de sátiros, personagens fantasmagóricos, companheiros de Dionísio e dirigidos por um bêbado lúbrico, Silênio. Seres lúbricos, eles exibem sua animalidade: dotados de um sexo em ereção e de uma cauda de cavalo, eles põem em cena um universo paródico e burlesco, no qual alguns vêem o prolongamento de cultos zoomórficos.”¹[1]

            Carrière, neste trecho de seu livro faz uma relação entre o satírico, a animalidade expressa pelo riso com a reprodução, a fecundidade dos homens e da natureza. A desordem, a devassidão presente em vários cultos da antiguidade, como as bacanais e dionisíacas, como já dito, têm como principal função recriar a ordem, reproduzir de forma simbólica o renascimento. Não apenas do Homem e do mundo, mas sim a gênese de uma determinada cultura, com suas estruturas  sociais específicas.
            Nestas comemorações, muitas pessoas saíam às ruas fantasiadas e embriagadas. Essas procissões festivas eram conhecidas como kômos, onde os participantes entoavam hinos e faziam brincadeiras com os transeuntes. Mostrando-nos o forte elo entre riso e a agressividade verbal. Deste kômos irá se originar o termo comédia. “O riso,como irrupção de forças vitais irracionais, está no centro da tragédia humana.” (Minois, p.37). Os gregos não hesitavam em misturar os gêneros teatrais, já que a comédia, tanto como a tragédia poderia retratar as tristezas cotidianas.
            Nas primeiras comédias, escritas principalmente por Aristófanes (445 a.C-386 a.C), o riso não tinha como principal objetivo divertir o público e levar a alegria. Aristófanes era conservador e por isso, via no riso um objeto a ser levado à sério por todos.

        “A função do riso, de início, era conservadora e não revolucionária. Como na festa, o riso da comédia visa ao confronto da norma, a repetir um rito fundador, a excluir os desvios e os inovadores, para manter a ordem social. Ele censura os mantenedores da ordem antiga apontando o dedo na derrisão para os perturbadores.” (2003, p.40).

            Muitas das peças de Aristófanes tinham como enredo questões como a política grega. As sátiras feitas aos governantes eram usadas para ridicularizar os políticos e criticar suas atuações políticas. Este riso crítico, ácido será a principal arma utilizada pelos escritores na hora de reclamar.  Um importante político grego de nome Alcebíades propôs uma lei que foi aprovada, onde estava terminantemente proibido zombarem dos homens políticos de Atenas.
            Desta maneira, os relatos e os estudos feitos nos mostram que o significado do riso para muitos povos da antiguidade não pode ser, muitas vezes, ligado à alegria como muitos imaginam. Assim como as sociedades, o riso também mudou ao longo dos séculos. “Durante muito tempo, saber o que é o riso foi desvendar os mistérios de uma faculdade humana marcada pela superioridade em relação aos animais e pela inferioridade em relação a Deus.” (Alberti, 2002, p.40).
            No final do século V a. C encontramos várias mudanças no âmbito culturas, religioso e político grego. É desta época que surgem os primeiros pensadores e o riso começará a perder seu valor sagrado, de ligação com os Deuses, trazendo-o como uma característica existente apenas entre os homens. Vários pensadores como Protágoras e até mesmo Sócrates serão acusados de ateísmo e de promoveram a desordem social. “Esses primeiros ataques contra o ateísmo coincidem com os primeiros questionamentos do riso. [...] O riso e o ceticismo religioso começaram a ser percebidos como fatores diluentes dos valores cívicos.” (Minois, p.41).



[1] CARRIÈRE, J.-C. “Carnaval e Política” apud MINOIS, 2003, p. 36.

terça-feira, 22 de maio de 2012

O Riso dos Deuses: a concepção do riso na antiguidade Clássica (Parte II)


TENDO RIDO DEUS...

           Quando falamos em mitos, muitos lembram dos gregos e sua rica mitologia. A Grécia arcaica, como é conhecida, via em suas lendas, uma forma de entender e explicar o mundo ao seu redor. O chamado “Papiro de Layde ou Leiden” (século IV d.C), que se encontra atualmente no Museu de Antiguidade de Leiden, foi encontrado na cidade egípcia de Tebas. “Nele, confluem conhecimentos extraídos das tradições astronômicas de origem egípcia, cruzados com elementos da cosmogonia grega.” (MACEDO, p.45).

          “Tendo rido Deus, nasceram os sete deuses que governaram o mundo... Quando ele gargalhou, fez-se a luz... Ele gargalhou pela segunda vez: tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta o tempo. Depois, pouco antes do sétimo riso, Deus inspira profundamente, mas ele ri tanto que chora, e de suas lágrimas nasce a alma.” (MINOIS, 2003, p. 21).

            Há outra versão mais detalhada da mesma passagem, encontrado em Martinez e Romero (1987, p. 283-284), citado por José Rivair Mecedo (2000),

           “Deus teria rido pela primeira vez, e apareceu Fos (Luz), Auge (brilho) e nasceu como deus o Fogo. Com o segundo riso, apareceu a água e foi criado o deus Escacleo. Tendo rido pela terceira vez com cólera, apareceu Nous (mente), que recebeu o nome de Hermes. Ao quarto riso, apareceu Genna (geração), que foi nomeada Badetoft Zotaxatoz. No quinto riso, Ele entristeceu, e apareceu Moira (destino) com uma balança, indicando com isto ser portadora da justiça. Ao rir pela sexta vez, mostrou-se alegre, e surgiu Kairós, segurando o cetro da realeza. Na sétima e última vez, nasceu Psique (alma) e Deus chorou enquanto ria.” (p. 45-46).

            Como podemos notar, para os gregos antigos, o mundo surgiu de uma grande gargalhada. Todos nós somos o resultado deste riso divino. Sendo o riso algo sagrado, pertencente aos deuses, logo ele terá que possuir uma “etiqueta” para o seu uso. É o riso sacralizado e ritualístico.


 O RISO PARA A ORGANIZAÇÃO DAS SOCIEDADES
            A função social do riso, não pode ser pensada apenas como uma característica pertencente à cultura grega clássica. Ele está presente em muitas civilizações orientais da antiguidade, quanto em culturas indígenas. Há registros antropológicos de quê a cultura Chalupi, da região sul do Chaco paraguaio possui “uma categoria de narrações míticas, destinadas a provocar o riso coletivo.” (Macedo, 2000, p.34). Este riso coletivo, não pode ser considerado um riso alegre ou de euforia. Nestas histórias contadas nas tribos Chalupi, as figuras respeitadas e temidas por estes índios são transformados em personagens com traços ridículos para provocarem a derrisão.
        “Por meio da diversão, os índios liberam seus temores, despojando os perigosos intermediários das forças sobrenaturais ao transformá-los em idiotas da aldeia. Inversão temporária, é claro, mas condição necessária para o equilíbrio da ordem cósmica e social sob a qual viviam.” (Ibidem, p.34).

            Esta inversão social ocasionada pelo riso representa o caos e de certa forma uma inversão da lógica de determinado grupo. Um exemplo simples e bem brasileiro é a comemoração de Carnaval. Época em que muitas regras e condutas são esquecidas por um determinado tempo, permitindo que as pessoas se divirtam, riam sem peso na consciência. O uso de fantasias, na tentativa de ser o que costumeiramente não se é, pode ser visto como uma “fuga” do cotidiano e a quebra de barreiras, sendo, mesmo que inconscientemente os principais objetivos da comemoração. Na concepção temporal cíclica, o caos torna-se necessário para que, exista após este período a ordem. “Ele estaria exatamente no ponto de intersecção entre o fim e o recomeço, entre a morte e o renascimento do mundo, da vida e do homem.” (2000, p.37).
            Durante toda a antiguidade clássica, presenciamos o riso como importante elemento ritualístico em diversas culturas. Não podemos ter como opinião que festas eram apenas festas. Elas possuíam fundamentos que vão além da mera diversão. No período em que esta desordem está em vigor, é comum em muitos dos festejos se escolhe um rei cômico, que presidirá a festa e ao fim, muitas das vezes, é oferecido ao sacrifício aos deuses. Este riso, segundo Minois (2003) revela,
        ”O esquecimento do profano, um contato com o mundo dos deuses e dos demônios que controlam a vida. (...) um retorno às origens que permite reproduzir os atos fundadores, para regenerar o mundo e os homens, para interromper o declínio.” (p.29-30).

            Estas festas realizadas de forma periódica tinham como principal objetivo reforçar o vínculo entre os homens e os deuses, atualizando-se os mitos de origens daquele povo. Muitos destes “reis cômicos” escolhidos entre o povo, serviam ao final como bode expiatório. Aliás! O riso está intimamente ligado à morte.
            Podemos também notar a concepção ritualística do riso presente na cultura semita. O próprio filho de Abraão, recebeu o nome de Isaac, “em hebraico Yiçechaq , que quer dizer ‘aquele que ri’” (Macedo,p. 45). Palavra que deriva do termo Yiçechaqèl que possuiu o significado de “Deus ri”. O fato de Isaac ser oferecido pelo pai em sacrifício à Javé, no livro de Gênesis, nos apresenta uma relação entre o riso e o morrer do homem.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O RISO DOS DEUSES : A CRIAÇÃO DO MUNDO E A CONCEPÇÃO DO RISO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA (Parte I)


INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como assunto principal a importância do riso na sociedade grega clássica. Sabe-se que muitas vezes, que os mitos de um determinado povo carregam aspectos sociais de seu tempo.  Mas porque estudar o riso? Teria o riso um importante papel na História? Diria que sim. A famosa mitologia grega, vê no riso um dos mais importantes elementos para se explicar o mundo e a sua organização. Mas o debate sobre o riso e o risível, não fica apenas na mitologia grega, sendo assunto de discussão entre os filósofos clássicos como Sócrates, Platão e Aristóteles. Ao longo dos séculos o riso, torna-se objeto de admiração e de repulsa, desejado por uns e odiado por outros. Sagrados para algumas tradições e visto como obra do Demônio por outras. Tão odiado fazendo com que pessoas envenenassem as páginas de um livro em um mosteiro, onde se é proibido rir, como nos retrata Umberto Eco em 1980.



O ESPAÇO DO RISÍVEL NA HISTÓRIA

Através dos séculos, o riso conheceu variadas formas de interpretação e de utilização social. Na antiguidade tinha aspecto sagrado e significava um contato dos Homens com o divino. Também significava a morte e a desordem do mundo terreno.  Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) em seu tratado “Das partes dos Animais”, afirma que “o ser humano é o único animal capaz de rir”, nota-se que a problemática do riso e sua percepção como algo pertencente a todo o ser humano já é discutida há muito tempo pela humanidade.
Porém, as discussões realizadas em torno do riso e do que é risível por muito tempo ficaram circunscritos aos debates anatômicos e no campo filosófico pensadores como Hobbes, Descartes foram um dos primeiros que deram uma visão moderna do risível.
No campo da História, este debate, em relação às outras ciências começou de forma tardia. Com as mudanças historiográficas no início do século XX, principalmente com o surgimento da Escola dos Annales, questões culturais, do pensamento e dos sentimentos tornaram-se objetos de estudo histórico.
Para José Rivair Macedo :
“O estudo da história do riso, ligado ao campo das manifestações de sensibilidade coletiva, não deve estar desvinculado das realidades sociais subjacentes à criação cultural. O problema, em nosso entender, não é o riso em si, mas o que ele pode revelar ou ocultar.” (2000 , p. 23).

Desta maneira, não podemos pensar no riso como algo isolado e sim, como um fenômeno coletivo que expressa e nos dá amostra do pensamento de um determinado contexto. O ato de rir é inerente ao ser humano, um aspecto fisiológico que se resume a movimentos dos músculos faciais. Porém, é oportuno compreender quais os motivos que causaram esses risos ao longo da história. Pois o homem, a sociedade e as percepções mudam, mesclam-se e  reestruturam-se com o passar do tempo.
Neste sentido:
“Se, de fato, a faculdade de rir caracteriza a natureza humana, então o riso é produto de uma dada cultura, resultando da complexidade do social. Assim sendo, este não estaria sujeito a condicionamentos, desdobramentos e transformações? O homem ri, é verdade, mas nem sempre pelos mesmos motivos, muito menos nas mesmas circunstâncias.” (MACEDO, p.22)

      As diversas maneiras de se apresentar o riso e o seu risível também são mais complicadas do que podemos imaginar. Ao longo dos séculos o riso recebeu várias conotações. Como dito antes, visto como algo sagrado pela maioria das civilizações ocidentais clássicas; obra do demônio pela Igreja durante a Idade Média; de simples felicidade, de escárnio e humilhação. Desta forma, a o estudo do riso e do seu papel na formação das sociedades e dos indivíduos ao longo da história é de extrema importância para que possamos entender, ao menos em parte, o conjunto de valores presente nos mitos.
      A temporalidade deste artigo limita-se à sociedade grega clássica e a visão que os gregos antigos tinham de seus mitos e o papel do riso e do risível entre eles. Podemos dividir a duas principais fases: o riso sagrado e o riso racional. Este primeira fase, característica da fase arcaica grega que via o riso com m caminho ao sagrado. Já o segundo, pensado de forma mais racional pelos filósofos gregos, tendo sido atribuído aos Homens, e não mais aos deuses, a vontade de rir. “Durante muito tempo, saber o que é o riso foi desvendar os mistérios de uma faculdade humana marcada pela superioridade em relação aos animais e pela inferioridade em relação a Deus.” (Alberti, 2002, p.40).