MORRER DE RIR: AS RELAÇÕES ENTRE O RISO
E A MORTE
“O riso e a morte fazem boa mistura. É
suficiente olhar um crânio para se convencer: nada pode roubar-lhe o eterno
sorriso.” (Minois,p.29)
Muitas
pessoas acham, no mínimo, estranho a associação entre o riso e a morte. Logo o
riso! Símbolo da vida e da felicidade. Então, porque rir da morte? Nos mitos
gregos, o riso alegre é permitido apenas aos deuses. “Nos homens, nunca é
alegria pura; a morte sempre está por perto.” (Minois, p.27).
Há relatos feitos por Heródoto na
região da Trácia que “saúda-se os nascimento com lamentações, porque se
considera que a vida é um mal, e morre-se rindo.” (Ibdem,p.27).
George
Minois (2003) ainda afirma que,
“ Outros contam a mesma coisa a
propósito da Sardenha, as vítimas sacrificadas ao deus lídio Sandon devem rir,
assim como os fenícios quando sacrificam seus filhos.” (p.27).
Este riso demonstrado pelas
vítimas sacrificais revela que para os povos antigos o rir era um ato mágico,
de transcendência que anunciava uma passagem. Rir para uma nova vida mostra,
portanto, o consentimento das vítimas para o ato do sacrifício. Inúmeros são os
relatos e as versões deste riso mortal espalhados no mundo antigo.
Há entre os antigos o que chamamos
de “riso sardônico”, espécie de riso inquietante. É um riso que provoca
desconforto, mal-estar. As origens deste termo são um quanto obscuras. Sabe-se,
porém, que o sardônico é originário
da Sardenha, quanto às suas versões, essas são inúmeras. A versão mais
difundida era a lenda de Talos, o homem de bronze, que saltava com suas vítimas
no fogo, que quando estavam sendo queimadas contraíam a boca dando a impressão
que estavam rindo daquilo tudo. Outra causa para este riso funesto também são
os espasmos provocados nas vítimas de envenenamento de uma determinada erva da
região Sardenha, relatada por Selênio no século III da era cristã.
“A
mesma localização é atribuída à história célebre de Falaris, tirano de Agripeno
que mandava matar suas vítimas encerrando-as num touro de bronze, que era
aquecido lentamente. O rosto torcido de dor parece rir de sua própria morte.”
(Minois, p.28)
Além de ser ligado aos sacrifícios
da região Sardenha, o riso sardônico
também poderia se empregado em momentos de sarcasmo. É aquele riso que surge em
momentos de cólera, de vingança, que nos faz rir com o canto da boca. “O
aspecto agressivo é realçado pelo fato de que a contração dos músculos da boca
mostra os dentes, como ressalta Hipócrates, que aproxima isso do riso de
loucura.” (Minois, p. 28).
Mas porquê o riso é um ingrediente essencial
para a maioria dos ritos de sacrifício e antecedem a morte? Há
“complementaridade entre o riso e a agressividade. O riso coletivo, de alguma
forma, prepara o abandono da violência, ele a desarma.” (2003, p.35).
Georges Minois, citando Konrad
Lorenz :
“Para
ele, o riso é uma ritualização do instinto de agressão que existe em cada um de
nós; ele permite controlar e reorientar nossas tendências naturais para a
brutalidade, a fim de tornar possível a vida social.” (2003, p.35).
Neste sentido, o riso pode ser
considerado uma expressão da agressividade animal, de forma mais “civilizada” e
simbólica.
A agressividade ligada ao riso grego
pode ser perfeitamente ligada aos bacanais realizados em homenagem ao deus
Dionísio. Tradicionalmente a figura desse deus grego está ligada à alegria e
embriaguez de viver. Mas ele seria representante apenas das forças “alegres” da
vida? É prática muito comum fazermos da figura de Dionísio a do vinho. Mas essa
embriaguez dionisíaca não está ligada ao álcool do vinho o excesso de seu
consumo. Para René Girard, citado por Minois, a embriaguez de origem é o “furor
homicida”. “Seus atributos ligam-se à
violência, que preside os desastres, e o divino Tirésias faz dele o inspirador
do terror e do pânico.” (2003, p.35).
Os primeiros festivais teatrais
surgidos na Grécia eram em honra a Dionísio dão prioridade à tragédia, mais do
que à comédia. Desta forma não estamos em um paradoxo?Porque a tragédia que nos
remete a coisas tristes era dedicada ao suposto deus da alegria?Não deveria ser
o contrário?Ser a comédia prestigiada nesses festivais? Essas questões nos
mostram o quanto é ambígua a figura dionisíaca dentro da religião grega. Para
aliviarem as tensões causadas pelas tragédias apresentadas, sempre era
apresentada uma peça mais alegre, o drama
satírico.
“A peça
é animada por um coro de sátiros, personagens fantasmagóricos, companheiros de
Dionísio e dirigidos por um bêbado lúbrico, Silênio. Seres lúbricos, eles
exibem sua animalidade: dotados de um sexo em ereção e de uma cauda de cavalo,
eles põem em cena um universo paródico e burlesco, no qual alguns vêem o
prolongamento de cultos zoomórficos.”¹[1]
Carrière, neste trecho de seu livro
faz uma relação entre o satírico, a animalidade expressa pelo riso com a
reprodução, a fecundidade dos homens e da natureza. A desordem, a devassidão
presente em vários cultos da antiguidade, como as bacanais e dionisíacas, como
já dito, têm como principal função recriar a ordem, reproduzir de forma
simbólica o renascimento. Não apenas do Homem e do mundo, mas sim a gênese de
uma determinada cultura, com suas estruturas sociais específicas.
Nestas comemorações, muitas pessoas
saíam às ruas fantasiadas e embriagadas. Essas procissões festivas eram
conhecidas como kômos, onde os
participantes entoavam hinos e faziam brincadeiras com os transeuntes.
Mostrando-nos o forte elo entre riso e a agressividade verbal. Deste kômos irá se originar o termo comédia.
“O riso,como irrupção de forças vitais irracionais, está no centro da tragédia
humana.” (Minois, p.37). Os gregos não hesitavam em misturar os gêneros
teatrais, já que a comédia, tanto como a tragédia poderia retratar as tristezas
cotidianas.
Nas primeiras comédias, escritas
principalmente por Aristófanes (445
a .C-386
a .C), o riso não tinha como principal objetivo divertir
o público e levar a alegria. Aristófanes era conservador e por isso, via no
riso um objeto a ser levado à sério por todos.
“A função do riso, de início, era
conservadora e não revolucionária. Como na festa, o riso da comédia visa ao confronto
da norma, a repetir um rito fundador, a excluir os desvios e os inovadores,
para manter a ordem social. Ele censura os mantenedores da ordem antiga
apontando o dedo na derrisão para os perturbadores.” (2003, p.40).
Muitas das peças de Aristófanes tinham
como enredo questões como a política grega. As sátiras feitas aos governantes
eram usadas para ridicularizar os políticos e criticar suas atuações políticas.
Este riso crítico, ácido será a principal arma utilizada pelos escritores na
hora de reclamar. Um importante político
grego de nome Alcebíades propôs uma lei que foi aprovada, onde estava
terminantemente proibido zombarem dos homens políticos de Atenas.
Desta maneira, os relatos e os
estudos feitos nos mostram que o significado do riso para muitos povos da
antiguidade não pode ser, muitas vezes, ligado à alegria como muitos imaginam.
Assim como as sociedades, o riso também mudou ao longo dos séculos. “Durante
muito tempo, saber o que é o riso foi desvendar os mistérios de uma faculdade
humana marcada pela superioridade em relação aos animais e pela inferioridade
em relação a Deus.” (Alberti, 2002, p.40).
No final do século V a. C
encontramos várias mudanças no âmbito culturas, religioso e político grego. É
desta época que surgem os primeiros pensadores e o riso começará a perder seu
valor sagrado, de ligação com os Deuses, trazendo-o como uma característica
existente apenas entre os homens. Vários pensadores como Protágoras e até mesmo
Sócrates serão acusados de ateísmo e de promoveram a desordem social. “Esses
primeiros ataques contra o ateísmo coincidem com os primeiros questionamentos
do riso. [...] O riso e o ceticismo religioso começaram a ser percebidos como
fatores diluentes dos valores cívicos.” (Minois, p.41).