terça-feira, 22 de maio de 2012

O Riso dos Deuses: a concepção do riso na antiguidade Clássica (Parte II)


TENDO RIDO DEUS...

           Quando falamos em mitos, muitos lembram dos gregos e sua rica mitologia. A Grécia arcaica, como é conhecida, via em suas lendas, uma forma de entender e explicar o mundo ao seu redor. O chamado “Papiro de Layde ou Leiden” (século IV d.C), que se encontra atualmente no Museu de Antiguidade de Leiden, foi encontrado na cidade egípcia de Tebas. “Nele, confluem conhecimentos extraídos das tradições astronômicas de origem egípcia, cruzados com elementos da cosmogonia grega.” (MACEDO, p.45).

          “Tendo rido Deus, nasceram os sete deuses que governaram o mundo... Quando ele gargalhou, fez-se a luz... Ele gargalhou pela segunda vez: tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta o tempo. Depois, pouco antes do sétimo riso, Deus inspira profundamente, mas ele ri tanto que chora, e de suas lágrimas nasce a alma.” (MINOIS, 2003, p. 21).

            Há outra versão mais detalhada da mesma passagem, encontrado em Martinez e Romero (1987, p. 283-284), citado por José Rivair Mecedo (2000),

           “Deus teria rido pela primeira vez, e apareceu Fos (Luz), Auge (brilho) e nasceu como deus o Fogo. Com o segundo riso, apareceu a água e foi criado o deus Escacleo. Tendo rido pela terceira vez com cólera, apareceu Nous (mente), que recebeu o nome de Hermes. Ao quarto riso, apareceu Genna (geração), que foi nomeada Badetoft Zotaxatoz. No quinto riso, Ele entristeceu, e apareceu Moira (destino) com uma balança, indicando com isto ser portadora da justiça. Ao rir pela sexta vez, mostrou-se alegre, e surgiu Kairós, segurando o cetro da realeza. Na sétima e última vez, nasceu Psique (alma) e Deus chorou enquanto ria.” (p. 45-46).

            Como podemos notar, para os gregos antigos, o mundo surgiu de uma grande gargalhada. Todos nós somos o resultado deste riso divino. Sendo o riso algo sagrado, pertencente aos deuses, logo ele terá que possuir uma “etiqueta” para o seu uso. É o riso sacralizado e ritualístico.


 O RISO PARA A ORGANIZAÇÃO DAS SOCIEDADES
            A função social do riso, não pode ser pensada apenas como uma característica pertencente à cultura grega clássica. Ele está presente em muitas civilizações orientais da antiguidade, quanto em culturas indígenas. Há registros antropológicos de quê a cultura Chalupi, da região sul do Chaco paraguaio possui “uma categoria de narrações míticas, destinadas a provocar o riso coletivo.” (Macedo, 2000, p.34). Este riso coletivo, não pode ser considerado um riso alegre ou de euforia. Nestas histórias contadas nas tribos Chalupi, as figuras respeitadas e temidas por estes índios são transformados em personagens com traços ridículos para provocarem a derrisão.
        “Por meio da diversão, os índios liberam seus temores, despojando os perigosos intermediários das forças sobrenaturais ao transformá-los em idiotas da aldeia. Inversão temporária, é claro, mas condição necessária para o equilíbrio da ordem cósmica e social sob a qual viviam.” (Ibidem, p.34).

            Esta inversão social ocasionada pelo riso representa o caos e de certa forma uma inversão da lógica de determinado grupo. Um exemplo simples e bem brasileiro é a comemoração de Carnaval. Época em que muitas regras e condutas são esquecidas por um determinado tempo, permitindo que as pessoas se divirtam, riam sem peso na consciência. O uso de fantasias, na tentativa de ser o que costumeiramente não se é, pode ser visto como uma “fuga” do cotidiano e a quebra de barreiras, sendo, mesmo que inconscientemente os principais objetivos da comemoração. Na concepção temporal cíclica, o caos torna-se necessário para que, exista após este período a ordem. “Ele estaria exatamente no ponto de intersecção entre o fim e o recomeço, entre a morte e o renascimento do mundo, da vida e do homem.” (2000, p.37).
            Durante toda a antiguidade clássica, presenciamos o riso como importante elemento ritualístico em diversas culturas. Não podemos ter como opinião que festas eram apenas festas. Elas possuíam fundamentos que vão além da mera diversão. No período em que esta desordem está em vigor, é comum em muitos dos festejos se escolhe um rei cômico, que presidirá a festa e ao fim, muitas das vezes, é oferecido ao sacrifício aos deuses. Este riso, segundo Minois (2003) revela,
        ”O esquecimento do profano, um contato com o mundo dos deuses e dos demônios que controlam a vida. (...) um retorno às origens que permite reproduzir os atos fundadores, para regenerar o mundo e os homens, para interromper o declínio.” (p.29-30).

            Estas festas realizadas de forma periódica tinham como principal objetivo reforçar o vínculo entre os homens e os deuses, atualizando-se os mitos de origens daquele povo. Muitos destes “reis cômicos” escolhidos entre o povo, serviam ao final como bode expiatório. Aliás! O riso está intimamente ligado à morte.
            Podemos também notar a concepção ritualística do riso presente na cultura semita. O próprio filho de Abraão, recebeu o nome de Isaac, “em hebraico Yiçechaq , que quer dizer ‘aquele que ri’” (Macedo,p. 45). Palavra que deriva do termo Yiçechaqèl que possuiu o significado de “Deus ri”. O fato de Isaac ser oferecido pelo pai em sacrifício à Javé, no livro de Gênesis, nos apresenta uma relação entre o riso e o morrer do homem.

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