quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Riso dos Deuses: a concepção do Riso na Antiguidade Clássica (Parte III)


MORRER DE RIR: AS RELAÇÕES ENTRE O RISO E A MORTE

        “O riso e a morte fazem boa mistura. É suficiente olhar um crânio para se convencer: nada pode roubar-lhe o eterno sorriso.” (Minois,p.29)

            Muitas pessoas acham, no mínimo, estranho a associação entre o riso e a morte. Logo o riso! Símbolo da vida e da felicidade. Então, porque rir da morte? Nos mitos gregos, o riso alegre é permitido apenas aos deuses. “Nos homens, nunca é alegria pura; a morte sempre está por perto.” (Minois, p.27).


            Há relatos feitos por Heródoto na região da Trácia que “saúda-se os nascimento com lamentações, porque se considera que a vida é um mal, e morre-se rindo.” (Ibdem,p.27).
            George Minois (2003) ainda afirma que,

           “ Outros contam a mesma coisa a propósito da Sardenha, as vítimas sacrificadas ao deus lídio Sandon devem rir, assim como os fenícios quando sacrificam seus filhos.” (p.27).

            Este riso demonstrado pelas vítimas sacrificais revela que para os povos antigos o rir era um ato mágico, de transcendência que anunciava uma passagem. Rir para uma nova vida mostra, portanto, o consentimento das vítimas para o ato do sacrifício. Inúmeros são os relatos e as versões deste riso mortal espalhados no mundo antigo.
            Há entre os antigos o que chamamos de “riso sardônico”, espécie de riso inquietante. É um riso que provoca desconforto, mal-estar. As origens deste termo são um quanto obscuras. Sabe-se, porém, que o sardônico é originário da Sardenha, quanto às suas versões, essas são inúmeras. A versão mais difundida era a lenda de Talos, o homem de bronze, que saltava com suas vítimas no fogo, que quando estavam sendo queimadas contraíam a boca dando a impressão que estavam rindo daquilo tudo. Outra causa para este riso funesto também são os espasmos provocados nas vítimas de envenenamento de uma determinada erva da região Sardenha, relatada por Selênio no século III da era cristã.

“A mesma localização é atribuída à história célebre de Falaris, tirano de Agripeno que mandava matar suas vítimas encerrando-as num touro de bronze, que era aquecido lentamente. O rosto torcido de dor parece rir de sua própria morte.” (Minois, p.28)

            Além de ser ligado aos sacrifícios da região Sardenha, o riso sardônico também poderia se empregado em momentos de sarcasmo. É aquele riso que surge em momentos de cólera, de vingança, que nos faz rir com o canto da boca. “O aspecto agressivo é realçado pelo fato de que a contração dos músculos da boca mostra os dentes, como ressalta Hipócrates, que aproxima isso do riso de loucura.” (Minois, p. 28). 
            Mas porquê o riso é um ingrediente essencial para a maioria dos ritos de sacrifício e antecedem a morte? Há “complementaridade entre o riso e a agressividade. O riso coletivo, de alguma forma, prepara o abandono da violência, ele a desarma.” (2003, p.35).
            Georges Minois, citando Konrad Lorenz :
“Para ele, o riso é uma ritualização do instinto de agressão que existe em cada um de nós; ele permite controlar e reorientar nossas tendências naturais para a brutalidade, a fim de tornar possível a vida social.” (2003, p.35).

            Neste sentido, o riso pode ser considerado uma expressão da agressividade animal, de forma mais “civilizada” e simbólica.
            A agressividade ligada ao riso grego pode ser perfeitamente ligada aos bacanais realizados em homenagem ao deus Dionísio. Tradicionalmente a figura desse deus grego está ligada à alegria e embriaguez de viver. Mas ele seria representante apenas das forças “alegres” da vida? É prática muito comum fazermos da figura de Dionísio a do vinho. Mas essa embriaguez dionisíaca não está ligada ao álcool do vinho o excesso de seu consumo. Para René Girard, citado por Minois, a embriaguez de origem é o “furor homicida”.  “Seus atributos ligam-se à violência, que preside os desastres, e o divino Tirésias faz dele o inspirador do terror e do pânico.” (2003, p.35).
            Os primeiros festivais teatrais surgidos na Grécia eram em honra a Dionísio dão prioridade à tragédia, mais do que à comédia. Desta forma não estamos em um paradoxo?Porque a tragédia que nos remete a coisas tristes era dedicada ao suposto deus da alegria?Não deveria ser o contrário?Ser a comédia prestigiada nesses festivais? Essas questões nos mostram o quanto é ambígua a figura dionisíaca dentro da religião grega. Para aliviarem as tensões causadas pelas tragédias apresentadas, sempre era apresentada uma peça mais alegre, o drama satírico.

“A peça é animada por um coro de sátiros, personagens fantasmagóricos, companheiros de Dionísio e dirigidos por um bêbado lúbrico, Silênio. Seres lúbricos, eles exibem sua animalidade: dotados de um sexo em ereção e de uma cauda de cavalo, eles põem em cena um universo paródico e burlesco, no qual alguns vêem o prolongamento de cultos zoomórficos.”¹[1]

            Carrière, neste trecho de seu livro faz uma relação entre o satírico, a animalidade expressa pelo riso com a reprodução, a fecundidade dos homens e da natureza. A desordem, a devassidão presente em vários cultos da antiguidade, como as bacanais e dionisíacas, como já dito, têm como principal função recriar a ordem, reproduzir de forma simbólica o renascimento. Não apenas do Homem e do mundo, mas sim a gênese de uma determinada cultura, com suas estruturas  sociais específicas.
            Nestas comemorações, muitas pessoas saíam às ruas fantasiadas e embriagadas. Essas procissões festivas eram conhecidas como kômos, onde os participantes entoavam hinos e faziam brincadeiras com os transeuntes. Mostrando-nos o forte elo entre riso e a agressividade verbal. Deste kômos irá se originar o termo comédia. “O riso,como irrupção de forças vitais irracionais, está no centro da tragédia humana.” (Minois, p.37). Os gregos não hesitavam em misturar os gêneros teatrais, já que a comédia, tanto como a tragédia poderia retratar as tristezas cotidianas.
            Nas primeiras comédias, escritas principalmente por Aristófanes (445 a.C-386 a.C), o riso não tinha como principal objetivo divertir o público e levar a alegria. Aristófanes era conservador e por isso, via no riso um objeto a ser levado à sério por todos.

        “A função do riso, de início, era conservadora e não revolucionária. Como na festa, o riso da comédia visa ao confronto da norma, a repetir um rito fundador, a excluir os desvios e os inovadores, para manter a ordem social. Ele censura os mantenedores da ordem antiga apontando o dedo na derrisão para os perturbadores.” (2003, p.40).

            Muitas das peças de Aristófanes tinham como enredo questões como a política grega. As sátiras feitas aos governantes eram usadas para ridicularizar os políticos e criticar suas atuações políticas. Este riso crítico, ácido será a principal arma utilizada pelos escritores na hora de reclamar.  Um importante político grego de nome Alcebíades propôs uma lei que foi aprovada, onde estava terminantemente proibido zombarem dos homens políticos de Atenas.
            Desta maneira, os relatos e os estudos feitos nos mostram que o significado do riso para muitos povos da antiguidade não pode ser, muitas vezes, ligado à alegria como muitos imaginam. Assim como as sociedades, o riso também mudou ao longo dos séculos. “Durante muito tempo, saber o que é o riso foi desvendar os mistérios de uma faculdade humana marcada pela superioridade em relação aos animais e pela inferioridade em relação a Deus.” (Alberti, 2002, p.40).
            No final do século V a. C encontramos várias mudanças no âmbito culturas, religioso e político grego. É desta época que surgem os primeiros pensadores e o riso começará a perder seu valor sagrado, de ligação com os Deuses, trazendo-o como uma característica existente apenas entre os homens. Vários pensadores como Protágoras e até mesmo Sócrates serão acusados de ateísmo e de promoveram a desordem social. “Esses primeiros ataques contra o ateísmo coincidem com os primeiros questionamentos do riso. [...] O riso e o ceticismo religioso começaram a ser percebidos como fatores diluentes dos valores cívicos.” (Minois, p.41).



[1] CARRIÈRE, J.-C. “Carnaval e Política” apud MINOIS, 2003, p. 36.

terça-feira, 22 de maio de 2012

O Riso dos Deuses: a concepção do riso na antiguidade Clássica (Parte II)


TENDO RIDO DEUS...

           Quando falamos em mitos, muitos lembram dos gregos e sua rica mitologia. A Grécia arcaica, como é conhecida, via em suas lendas, uma forma de entender e explicar o mundo ao seu redor. O chamado “Papiro de Layde ou Leiden” (século IV d.C), que se encontra atualmente no Museu de Antiguidade de Leiden, foi encontrado na cidade egípcia de Tebas. “Nele, confluem conhecimentos extraídos das tradições astronômicas de origem egípcia, cruzados com elementos da cosmogonia grega.” (MACEDO, p.45).

          “Tendo rido Deus, nasceram os sete deuses que governaram o mundo... Quando ele gargalhou, fez-se a luz... Ele gargalhou pela segunda vez: tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta o tempo. Depois, pouco antes do sétimo riso, Deus inspira profundamente, mas ele ri tanto que chora, e de suas lágrimas nasce a alma.” (MINOIS, 2003, p. 21).

            Há outra versão mais detalhada da mesma passagem, encontrado em Martinez e Romero (1987, p. 283-284), citado por José Rivair Mecedo (2000),

           “Deus teria rido pela primeira vez, e apareceu Fos (Luz), Auge (brilho) e nasceu como deus o Fogo. Com o segundo riso, apareceu a água e foi criado o deus Escacleo. Tendo rido pela terceira vez com cólera, apareceu Nous (mente), que recebeu o nome de Hermes. Ao quarto riso, apareceu Genna (geração), que foi nomeada Badetoft Zotaxatoz. No quinto riso, Ele entristeceu, e apareceu Moira (destino) com uma balança, indicando com isto ser portadora da justiça. Ao rir pela sexta vez, mostrou-se alegre, e surgiu Kairós, segurando o cetro da realeza. Na sétima e última vez, nasceu Psique (alma) e Deus chorou enquanto ria.” (p. 45-46).

            Como podemos notar, para os gregos antigos, o mundo surgiu de uma grande gargalhada. Todos nós somos o resultado deste riso divino. Sendo o riso algo sagrado, pertencente aos deuses, logo ele terá que possuir uma “etiqueta” para o seu uso. É o riso sacralizado e ritualístico.


 O RISO PARA A ORGANIZAÇÃO DAS SOCIEDADES
            A função social do riso, não pode ser pensada apenas como uma característica pertencente à cultura grega clássica. Ele está presente em muitas civilizações orientais da antiguidade, quanto em culturas indígenas. Há registros antropológicos de quê a cultura Chalupi, da região sul do Chaco paraguaio possui “uma categoria de narrações míticas, destinadas a provocar o riso coletivo.” (Macedo, 2000, p.34). Este riso coletivo, não pode ser considerado um riso alegre ou de euforia. Nestas histórias contadas nas tribos Chalupi, as figuras respeitadas e temidas por estes índios são transformados em personagens com traços ridículos para provocarem a derrisão.
        “Por meio da diversão, os índios liberam seus temores, despojando os perigosos intermediários das forças sobrenaturais ao transformá-los em idiotas da aldeia. Inversão temporária, é claro, mas condição necessária para o equilíbrio da ordem cósmica e social sob a qual viviam.” (Ibidem, p.34).

            Esta inversão social ocasionada pelo riso representa o caos e de certa forma uma inversão da lógica de determinado grupo. Um exemplo simples e bem brasileiro é a comemoração de Carnaval. Época em que muitas regras e condutas são esquecidas por um determinado tempo, permitindo que as pessoas se divirtam, riam sem peso na consciência. O uso de fantasias, na tentativa de ser o que costumeiramente não se é, pode ser visto como uma “fuga” do cotidiano e a quebra de barreiras, sendo, mesmo que inconscientemente os principais objetivos da comemoração. Na concepção temporal cíclica, o caos torna-se necessário para que, exista após este período a ordem. “Ele estaria exatamente no ponto de intersecção entre o fim e o recomeço, entre a morte e o renascimento do mundo, da vida e do homem.” (2000, p.37).
            Durante toda a antiguidade clássica, presenciamos o riso como importante elemento ritualístico em diversas culturas. Não podemos ter como opinião que festas eram apenas festas. Elas possuíam fundamentos que vão além da mera diversão. No período em que esta desordem está em vigor, é comum em muitos dos festejos se escolhe um rei cômico, que presidirá a festa e ao fim, muitas das vezes, é oferecido ao sacrifício aos deuses. Este riso, segundo Minois (2003) revela,
        ”O esquecimento do profano, um contato com o mundo dos deuses e dos demônios que controlam a vida. (...) um retorno às origens que permite reproduzir os atos fundadores, para regenerar o mundo e os homens, para interromper o declínio.” (p.29-30).

            Estas festas realizadas de forma periódica tinham como principal objetivo reforçar o vínculo entre os homens e os deuses, atualizando-se os mitos de origens daquele povo. Muitos destes “reis cômicos” escolhidos entre o povo, serviam ao final como bode expiatório. Aliás! O riso está intimamente ligado à morte.
            Podemos também notar a concepção ritualística do riso presente na cultura semita. O próprio filho de Abraão, recebeu o nome de Isaac, “em hebraico Yiçechaq , que quer dizer ‘aquele que ri’” (Macedo,p. 45). Palavra que deriva do termo Yiçechaqèl que possuiu o significado de “Deus ri”. O fato de Isaac ser oferecido pelo pai em sacrifício à Javé, no livro de Gênesis, nos apresenta uma relação entre o riso e o morrer do homem.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O RISO DOS DEUSES : A CRIAÇÃO DO MUNDO E A CONCEPÇÃO DO RISO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA (Parte I)


INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como assunto principal a importância do riso na sociedade grega clássica. Sabe-se que muitas vezes, que os mitos de um determinado povo carregam aspectos sociais de seu tempo.  Mas porque estudar o riso? Teria o riso um importante papel na História? Diria que sim. A famosa mitologia grega, vê no riso um dos mais importantes elementos para se explicar o mundo e a sua organização. Mas o debate sobre o riso e o risível, não fica apenas na mitologia grega, sendo assunto de discussão entre os filósofos clássicos como Sócrates, Platão e Aristóteles. Ao longo dos séculos o riso, torna-se objeto de admiração e de repulsa, desejado por uns e odiado por outros. Sagrados para algumas tradições e visto como obra do Demônio por outras. Tão odiado fazendo com que pessoas envenenassem as páginas de um livro em um mosteiro, onde se é proibido rir, como nos retrata Umberto Eco em 1980.



O ESPAÇO DO RISÍVEL NA HISTÓRIA

Através dos séculos, o riso conheceu variadas formas de interpretação e de utilização social. Na antiguidade tinha aspecto sagrado e significava um contato dos Homens com o divino. Também significava a morte e a desordem do mundo terreno.  Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) em seu tratado “Das partes dos Animais”, afirma que “o ser humano é o único animal capaz de rir”, nota-se que a problemática do riso e sua percepção como algo pertencente a todo o ser humano já é discutida há muito tempo pela humanidade.
Porém, as discussões realizadas em torno do riso e do que é risível por muito tempo ficaram circunscritos aos debates anatômicos e no campo filosófico pensadores como Hobbes, Descartes foram um dos primeiros que deram uma visão moderna do risível.
No campo da História, este debate, em relação às outras ciências começou de forma tardia. Com as mudanças historiográficas no início do século XX, principalmente com o surgimento da Escola dos Annales, questões culturais, do pensamento e dos sentimentos tornaram-se objetos de estudo histórico.
Para José Rivair Macedo :
“O estudo da história do riso, ligado ao campo das manifestações de sensibilidade coletiva, não deve estar desvinculado das realidades sociais subjacentes à criação cultural. O problema, em nosso entender, não é o riso em si, mas o que ele pode revelar ou ocultar.” (2000 , p. 23).

Desta maneira, não podemos pensar no riso como algo isolado e sim, como um fenômeno coletivo que expressa e nos dá amostra do pensamento de um determinado contexto. O ato de rir é inerente ao ser humano, um aspecto fisiológico que se resume a movimentos dos músculos faciais. Porém, é oportuno compreender quais os motivos que causaram esses risos ao longo da história. Pois o homem, a sociedade e as percepções mudam, mesclam-se e  reestruturam-se com o passar do tempo.
Neste sentido:
“Se, de fato, a faculdade de rir caracteriza a natureza humana, então o riso é produto de uma dada cultura, resultando da complexidade do social. Assim sendo, este não estaria sujeito a condicionamentos, desdobramentos e transformações? O homem ri, é verdade, mas nem sempre pelos mesmos motivos, muito menos nas mesmas circunstâncias.” (MACEDO, p.22)

      As diversas maneiras de se apresentar o riso e o seu risível também são mais complicadas do que podemos imaginar. Ao longo dos séculos o riso recebeu várias conotações. Como dito antes, visto como algo sagrado pela maioria das civilizações ocidentais clássicas; obra do demônio pela Igreja durante a Idade Média; de simples felicidade, de escárnio e humilhação. Desta forma, a o estudo do riso e do seu papel na formação das sociedades e dos indivíduos ao longo da história é de extrema importância para que possamos entender, ao menos em parte, o conjunto de valores presente nos mitos.
      A temporalidade deste artigo limita-se à sociedade grega clássica e a visão que os gregos antigos tinham de seus mitos e o papel do riso e do risível entre eles. Podemos dividir a duas principais fases: o riso sagrado e o riso racional. Este primeira fase, característica da fase arcaica grega que via o riso com m caminho ao sagrado. Já o segundo, pensado de forma mais racional pelos filósofos gregos, tendo sido atribuído aos Homens, e não mais aos deuses, a vontade de rir. “Durante muito tempo, saber o que é o riso foi desvendar os mistérios de uma faculdade humana marcada pela superioridade em relação aos animais e pela inferioridade em relação a Deus.” (Alberti, 2002, p.40).





segunda-feira, 2 de abril de 2012

OS RENEGADOS DA HISTÓRIA: A IMPORTÂNCIA DOS PRÉ-MODERNOS PARA O PENSAMENTO NACIONAL.

A historiadora Tânia Regina de Luca trás ao seu leitor uma profunda análise da produção intelectual brasileira nas primeiras décadas do século XX, através do livro “ A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N) ação”, Editora UNESP,1999. Luca tem como principal objetivo, através das edições do periódico paulista “Revista do Brasil” interpretar os pensadores, a formação do pensamento social, neste período até então pouco explorado pela historiografia, ficando à margem, “expremido” entre a geração intelectual da década de 1870 e à vanguarda modernista de 1922.

Os chamados “pré-modernistas”, neste estudo, ganham uma importante visibilidade e uma oportunidade de debate de suas idéias, até então deixados no ostracismo pela historiografia tradicional. Assuntos como os avanços e as dificuldades encontradas na sociedade brasileira da belle époque, a incansável busca por uma identidade nacional apoiada no republicanismo, bem como a ordem e o progresso com suas propostas eugênicas.

A pesquisadora tem como principal cenário de estudo a São Paulo cosmopolita, cafeicultora e republicana que começa a galgar seu lugar de destaque no cenário nacional nas décadas de 10 e 20 do século passado. Ao pôr à baila as discussões desta época e seus debatedores, marginalizados pela chamada história de ruptura, que privilegia marcos de ruptura social, como grandes revoluções ou movimentos sociais. No Brasil, temos como marco a vanguarda de 1922 como o primeiro e mais importante movimento intelectual brasileiro do século XX, esquecendo de suas bases e suas origens. As grandes transformações mundiais e a crescente internacionalização da cultura, trás à tona a busca pela identidade nacional. É neste cenário que a primeira fase do periódico (1916-1925) estudada, torna-se importante instrumento para os intelectuais brasileiros discutirem a sociedade, sua história e seu futuro. Mas como se inicia uma discussão intelectual deste porte e chega à diversas classes sociais se o analfabetismo chega à casa dos 80% no Brasil desta época?

O mundo estava mudando, assim como a sociedade em seus mais variados aspectos. Além da transformação tecnológica por qual a ciência passava, novas maneiras de comportamento, de visão do mundo surgem. A imprensa acompanha esta revolução social que está acontece no virar do século. As novas técnicas de impressão, promovem uma maior qualidade dos jornais e sua maior popularização. É marcante também a mudança de discurso feita pela imprensa. Agora, os jornais passaram de meros veículos de propaganda partidária, para serem um instrumento de informação. Desta época surgem as primeiras revistas especializadas no consumo cultural. Revistas dedicadas à moda, à literatura, à vida doméstica, atingindo assim, um público maior e conseqüentemente atingindo várias camadas sociais. É neste cenário que a “Revista do Brasil” será fundada em 1916, para suprir as demandas deste novo público.

O discurso nacionalista, liderado por Monteiro Lobato, que se torna dono da revista em 1918, mostra-nos as preocupações de uma elite pensante, com os rumos que o Brasil deveria tomar e se acham os responsáveis da missão, com uma entonação iluminista, eu diria, de levar o país ao esclarecimento. Era necessário tirar o Brasil das “trevas”, caracterizada por uma sociedade atrasada, sem cultura e educação e abrir os olhos para a modernidade que batia à porta.

Para se ter uma Nação é estritamente necessário um território. Mais do que tê-lo, é importante conhecê-lo. Dessa necessidade de um autoconhecimento, a Geografia como justificadora da História entre em cena nas páginas da ‘Revista’. Além do vasto território e das belezas naturais, era preciso encontrar um elo de ligação, unir as várias regiões e incutir na população o sentimento de pertencimento, de brasilidade. Conseguir-se-ia desta forma fazer com que as pessoas se sentissem responsáveis pela manutenção da soberania nacional, agora ameaçada pelo imperialismo das grandes potências, devido ao advento da Primeira Guerra Mundial em 1914.

É nesta busca pelo mito fundante que os colaboradores da “Revista do Brasil” irão debruçar sua atenção, buscando nos tempos Coloniais, até então pouco explorado, a figura do Bandeirante Paulista, o “herói desbravador e civilizador”. Primeiro responsável por esta unidade nacional, tornando-se assim, o fundador da Nação. Até hoje esta idéia de um “Brasil Paulistano” é encontrada. Os diversos artigos publicados no periódico mostram a preocupação dos intelectuais paulistas em transformar o Brasil num país moderno, rico e desenvolvido a exemplo do Estado de São Paulo. Os paulistas seriam a exemplo dos bandeirantes, os que levariam a civilidade para os demais cantos do Brasil. Acreditava-se que esta sede por desbravar estava inerente no sangue de todo o paulista.

No embalo deste desenvolvimento desenfreado, defendido pelos pré-modernistas, houve uma grande crítica à educação humanista, considerada ultrapassada e sem utilidade. Para muitos, o século que se iniciava era o tempo das Ciências Naturais, Exatas e da Mecânica. O ofício do Bacharel em Direito tornava-se inútil em um país que desejava ser moderno e por isso precisava de engenheiros e cientistas, responsáveis pelo progresso técnico.

Outra questão que vinha à tona quando se abria a discussão do que era o Brasil, era a questão étnica. Não podemos esquecer que os anos 10 e 20 do século passado, foram o auge dos debates teóricos em torno da “raça” e sés efeitos na sociedade. Como principal veículo de comunicação da elite paulista, a “Revista do Brasil” não teria como ficar de fora dos debates a respeito desta temática.

Para se forjar uma nacionalidade, deveríamos inventar uma “raça brasileira”. Já é bastante conhecida e discutida a recepção das teorias raciais do século XIX em terras brasileiras, bem como as mudanças realizadas aqui no Brasil para se adequarem à realidade nacional. O material publicado pela revista nos aponta os dois principais caminhos por quais os intelectuais contemporâneos ao periódico se enveredavam. A problemática a ser discutida por ambas correntes era a miscigenação da nação.

De um lado tínhamos os “pessimistas” como: Silvo Romero e Nina Rodrigues, que viam na mistura étnica o principal fato para o atraso, a boçalidade e a falta de civilidade da gente brasileira. O sangue indígena e principalmente o africano, envenenavam o puro sangue colonizador lusitano, fizeram do nosso Brasil uma terra de mestiços, fadados ao fracasso. Por algumas vezes esta corrente ganhou voz entre os exemplares da “Revista”. O seu símbolo mais forte foi o personagem criado por Monteiro Lobato em 1914 que teve sua primeira aparição no conto “Urupês”. Era a figura do Jeca Tatu, que tratarei mais adiante sobre os seus variados nuances ao longo dos anos da primeira fase da revista, tendo o seu criador como diretor do periódico. A outra corrente que foi a mais forte dentro da revista, foi a dos “otimistas”. Os adeptos desta “corrente” defendiam que a miscigenação a longo prazo, se bem manipulada, levaria a um crescente branqueamento e faria do Brasil futuro, um país desenvolvido como os países do mundo desenvolvido. Note que a concepção dita “otimista”, de qualquer forma, não exonera o índio e o negro da culpa de nossos males. Cabia aos brancos se miscigenarem com as demais ‘raças’ inferiores, para termos num futuro um país totalmente branco.

Criado em 1914, o Jeca Tatu passou a ser símbolo do mulato, caboclo da sociedade brasileira atrasada, arredia à civilização. Em suma, o Jeca era tudo o que éramos, mas não queríamos ser. Este homem do sertão, do além São Paulo, representante de uma sociedade mestiça, indolentes e carregados de negatividade quanto à sua personalidade e genética, faria da civilizada capital paulista uma exportadora do que o resto do país deveria ser. Mas o Jeca seria visto desta maneira até uma época... depois notamos uma mudança no seu status, graças aos higienistas e sanitaristas.

O progresso também vinha acompanhado da idéia de limpeza. Assim como a eugenia defendia um ‘limpeza’ de sangue, era necessário fazer uma limpeza nas cidades, já que os novos ares do progresso se aproximavam e principalmente da população. O movimento higienista começa a dar seus primeiros passos após a instalação da República em 1889. Maior exemplo foi a campanha a favor da vacina obrigatória, encabeçada por Oswaldo Cruz em 1904. Por muito tempo os eugenistas mantiveram uma estreita relação com os higienistas, grupo este que foi se afastando com as mudanças de concepções de seus adeptos.

A mudança aconteceu quando a problemática da “má qualidade” da população brasileira, deixou de ser vista com os olhos da raça e passou a ser defrontada com o fator biológico, as doenças que se espalhavam pelo interior brasileiro. Agora, as doenças como sífilis, tracoma entre outras eram as causadoras do nosso atraso. Críticas quando à falta de comprometimento do Estado a essas questões, pautam grande parte dos artigos publicados na “Revista do Brasil”. Até mesmo o Jeca de Lobato foi interpretado dessa nova maneira. O próprio Lobato faz um mea culpa com a famosa frase: “O Jeca não é assim. Ele está assim.”

Era necessária que a população fosse informada da importância dos hábitos de higiene, dentro das casas brasileiras. A higienização da sociedade, aos poucos, vai mudando muitos dos costumes das famílias brasileiras. A cozinha, considerada sabedoria popular, começa a se preocupar com a qualidade dos alimentos postos à mesa do brasileiro, tornando-a a arte de cozinhar em ciência. A concepção da época aponta para o pensamento de que uma nação sã, só se faz com cidadãos sãos. Para isto, surgiram inúmeras campanhas a favor da facilitação ao acesso do povo, aos tratamentos oferecidos pela medicina moderna. Preocupados com o futuro do Brasil, também se tornou necessário que a conscientização viesse desde cedo, cabendo às escolas Primárias a distribuição de materiais didáticos para que desde pequenas as crianças soubessem da importância do cuidado da saúde.

Último aspecto abordado pela autora em sua pesquisa a respeito da construção da nacionalidade moderna via “Revista do Brasil” é a língua portuguesa. Na concepção moderna de Estado, nada é mais unificador do que sua linguagem. É a língua escrita ou falada que transmite, na maioria das vezes, toda a carga simbólica de tradições de uma determinada comunidade. O problema da língua, discutido nas páginas da “Revista do Brasil” aponta para a seguinte questão: “Como um país que desejava ter uma cultura, uma nacionalidade própria, ainda mantinha laços de servidão quanto à língua, reminiscências do período Colonial Português?”. Bem ou mal, a língua falada aqui, por mais que tenha a base lusófona, tornou-se um idioma único no mundo, devido suas inúmeras peculiaridades. Os mais ortodoxos como Osório Duque-Estrada defendiam a permanência, se não da pronúncia, ao menos da gramática tal e qual era em Portugal. Contra tais medidas, existiam os nacionalistas como Monteiro Lobato, Olavo Bilac e os modernistas como Mário de Andrade que, notando as peculiaridades da língua portuguesa falada no Brasil, defendiam uma reforma gramatical de acordo com a realidade brasileira, adotando inclusive, no vocabulário nacional, verbetes das culturas indígenas e africanas até então condenados ao ostracismo dos gramáticos ortodoxos.

Nas mais de 300 páginas do livro, podemos constatar e nos informar da importância que esta geração esquecida ou desmerecida, teve para a formação do pensamento brasileiro nos primeiros anos da República. A riqueza da produção intelectual desta elite que assume para si o compromisso de levar o Brasil ao desenvolvimento e figurar no hall das grandes potências modernas, é muito grande. Pelos artigos publicados por esta elite, também notamos que o movimento “pré-moderno” nunca foi sinônimo de homogeneidade, estagnação e apenas uma “ponte”, uma fase transitória entre a geração de 1870, com os modernistas da Semana de 1922.

Este estudo torna-se importante para debatermos o pensamento nacional bem como nossa história intelectual. Através das argumentações da historiadora Tânia de Luca, vemos que existiu sim uma cultura nacional e muito atuante no período da “República Velha”. Que as preocupações culturais, como o nacionalismo e o antropofagismo já estavam sendo discutidas há alguns anos anteriores ao de 1922 e que, antes da Semana de Arte Moderna de São Paulo, já existia cultura neste país.
REFERÊNCIAS

DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: Um diagnóstico para a (N) ação. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

ENTRE A BANDEIRA E A CRUZ: A ANÁLISE DE DUAS CULTURAS

MOOG, Vianna. Bandeirantes e pioneiros: paralelo entre duas culturas. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

*Caroline Greiner e Rafael de Brito


América. Um continente, tanta diversidade. Como entendê-las? Esse é o esforço do ensaísta gaúcho Viana Moog em seus trabalhos. Clodomir Viana Moog nasceu no município de São Leopoldo no Rio grande do Sul. Foi advogado, jornalista, romancista, biógrafo e ensaísta. Ao buscar entender o próprio Brasil, Moog não nos compara com os modelos europeus de sociedade e sim, faz um exercício crítico de comparar a América e suas diferenças, pela própria América. Em sua obra “Bandeirantes e Pioneiros: paralelo entre duas culturas”, lançado no ano de 1954, faz um exercício de reflexão para entender tanto o comportamento brasileiro e suas relações sociais quanto a sociedade norte-americana .

O autor, neste seu estudo não faz aquele velho discurso maniqueísta apontando o Brasil como o primo pobre, de matriz lusitana, que ainda sofre com as desigualdades em contraste com “o primo rico” do norte, industrializado e com um exemplo de civilização a ser seguido ou tomado como um modelo para o nosso futuro. Ele aponta os fracassos e as virtudes destes dois países e faz um paralelo muito interessante entre essas duas culturas. Isso não nos quer dizer que há superioridade racial dos norte-americanos, comparados com nós. Pelo contrário, Viana Moog esforça-se para mostrar que as diferenças entre as duas sociedades analisadas estão fora da discussão biológica e sim na cultura, religião; economia e ambiente.

Um ponto interessante da obra é tentar compreender a grande aceitação das teorias raciais do final do século XIX e início do século XX em nosso país, o que é estranho na opinião do autor, um dos povos mais miscigenados do mundo ter preconceito contra a sua própria constituição racial. Quando comparado com os Estados Unidos, nota-se que lá essas teorias raciais não foram aceitas com tanta intensidade quanto aqui no Brasil. No entanto, isso não faz com que os norte-americanos sejam menos racistas que os brasileiros. Mantiveram-se “puros”, fechados em suas comunidades, tornando-se hostis aos de fora e nós, por mais miscigenados que somos, por incrível que pareça buscamos durante décadas chegar à uma pureza utópica.

Na composição da obra, Moog abre mão de estudos geográficos, antropológicos e históricos para compreender nossas diferenças e nossas semelhanças. Não nos enganamos quanto ao rompimento com o velho mundo e os velhos ideais, é lá, que para o autor está grande parte dessas explicações. Na Inglaterra, para os puritanos quem dita as regras é Deus, em Portugal, o espírito aventureiro. Partimos dessas duas premissas para explicar um pouco a análise do autor.

Para entendermos uma parte do pensamento norte-americano, temos que entender os tripulantes do navio MayFlower, os chamados Pioneiros. Primeiros colonizadores da Nova Inglaterra. Calvinistas, saíram de lá expulsos pela perseguição religiosa da Igreja Anglicana e ao partirem em 1620, rumo ao novo mundo, trouxeram consigo comportamentos muito presentes, ainda, na sociedade americana. Mesmo com o passar do tempo, a globalização e cada vez mais a convicção de vivermos na famosa “aldeia global” não foi possível diluir totalmente o pensamento daqueles “peregrinos” que embarcaram do porto de Southampton no início do século XVII. Com a Bíblia debaixo do braço, junto com suas famílias, os Pioneiros partiram com a certeza que não voltariam e que daquele momento em diante deveriam contar com sua fé e sua comunidade. Ao chegarem, com suas famílias, reuniram-se em comunidades e encontraram um terreno e uma temperatura que exigiria poucas mudanças.

Os portugueses quando saíram, a causa foi econômica, principalmente com o surgimento das rotas marítimas rumo às Índias. Tratando-se de colonização, mais especificadamente a do Brasil, ela foi desordenada e variada. Uns viriam pela fé e para expandir o Império dos Céus, outros, apenas de ouro. Eis que surge a figura do Bandeirante como o mito fundador brasileiro, assim como o Pioneiro do MayFlower. Serão estas duas figuras – o Bandeirante e o Pioneiro – contrastadas nas análises, como símbolos em que o Brasil e os Estados Unidos se apóiam para explicar uma origem comum aos seus cidadãos.

A figura do Pioneiro vai ser utilizada como um exemplo a ser seguido, um tipo ideal, para a ética protestante . Para ele, o trabalho e as conquistas são bênçãos de Deus. Quanto mais trabalho e mais próspero se fica, mais abençoado pelo Senhor você está. “O trabalho dignifica o Homem” é o mote do cidadão norte-americano. Lá, houve uma colonização ordeira, onde quem avançava as novas terras eram as comunidades ou o núcleo familiar. Daí o comportamento comunitário dos norte-americanos. O gosto por decidir tudo em comunidade, em convenções. As casas sem cerca, sempre abertas aos seus vizinhos. Na visão de Viana Moog, o norte-americano importa-se mais com as aparências em sua comunidade, do que com a própria família. À sua comunidade, cabe ressaltar. Porém, esse ‘bairrismo’ os torna bastante isolados e desconfiados dos outros. No Brasil, os homens com seu espírito de aventura atreviam-se por essas terras, sozinhos, iniciando o processo de miscigenação do povo brasileiro visto por muito tempo como o maior de nossos males. Este espírito de aventura, fez com que os primeiros colonizadores do nosso país não fincassem raízes por aqui. Tinha-se a concepção que sua permanência na colônia era passageira, voltando rico a Portugal quando achasse o El Dourado. Aos que aqui chegaram a esperança do retorno à terra natal e a ausência de instituições sólidas, como a família, traçou nosso perfil individualista, pouco preocupados com as questões sociais. Antes as minhas coisas, depois os outros.

Vários fatores foram utilizados pelo autor como análise comparativa entre os dois países já citados ao longo desta resenha. Inicialmente Moog analisa o relevo de Brasil e EUA: o primeiro de relevo plano e sem oferecer impedimentos a quem quiser adentrar seu vasto território; o segundo com altas montanhas, matas densas e selva perigosa, dificultando o acesso de quem quer que fosse habitar suas terras. Depois os rios entram na discussão: o São Francisco é melhor que o Amazonas; EUA tem rios e lagos que se interligam entre si facilitando o acesso de um estado para outro; o Brasil é pobre de rios e lagos, nem para a agricultura diz-se que não poderiam ser usados. O clima norte-americano possui temperaturas bem definidas, aqui no Brasil é verão sempre. A verdadeira utilização dos rios brasileiros se dará apenas no século XX, para a produção de energia elétrica, devido ao seu relevo acidentado.

Passa-se ainda pela Idade Média, relembrando a questão de judeu e da prática da usura. De como, naquele período ser pobre, desprovido de bens, era sinônimo de estar mais perto de Deus e do Céu. O fator progresso só pode ser gerado por vontade divina, pensamento regido pela Igreja Católica, grande influenciadora do pensamento do homem, momento da História, em que a racionalidade não fazia parte das concepções dos homens de bem. Ser comerciante era sinônimo de perigo e a propriedade até poderia ser privada, contando que distribuída entre o maior número de pessoas possíveis. A usura era mal vista, motivo de todos os males dentro de uma sociedade.

Ainda entra-se no questionamento se o Protestantismo e o Calvinismo realmente influenciaram o capitalismo e a segregação racial. Doutrinariamente falando, para o Calvinismo, pobreza é sinal de ociosidade. Comparando com o Catolicismo, em que a pobreza regenera a alma, até que ponto as religiões influenciaram o progresso dentro das sociedades. Muito das concepções religiosas explicam certos comportamentos em relação ao progresso. Para Calvinistas e Protestantes o mundo foi feito para os eleitos e puros que tem por ordem acabar com os condenados e pecadores, legitimando assim o racismo dentro das sociedades de fundamentação ligada a essas religiões. Então, analisando por esse lado, o progresso dos EUA não se deve apenas ao carvão, e sim, à religião e à cultura. Não que os católicos não sejam racistas. O autor ‘peca’ nessa questão quando afirma que no Brasil o racismo é quase nulo, comparado com os Estados Unidos.

Voltando ao Brasil e a seus colonizadores portugueses encontramos raízes do adultério na dominação moura da Península Ibérica no século VII. Enquanto os ibéricos eram “enfeitiçados” pelo poder de sedução das princesas mouras, nossos colonizadores esqueceram suas esposas na terrinha para cair nos braços, primeiro das índias e com o tempo das negras aqui no Brasil, iniciando esse processo de miscigenação tão característico da composição étnica do povo brasileiro.

Os colonizadores da América do Norte, por sua vez, traziam consigo esposa e filhos quando da sua chegada à terra a ser habitada, não caindo assim às tentações dos prazeres mundanos. Para o norte-americano a mulher trabalha de maneira conjunta em nome da prosperidade e dos bons negócios. Para o português, a mulher é apenas instrumento de prazer e para parir filhos. Nesse momento Moog utiliza-se de duas histórias de enredos semelhantes e finais diferentes: no Brasil, temos o romance de Diogo Álvares e Paraguaçu, português, colonizador e branco versus índia, que se casam, constituem família e moram felizes, um tempo na Corte e por fim no próprio Brasil; já John Smith, o colonizador, e Pocahontas, a índia apache, têm um caso amoroso, o branco tem a vida salva pela índia e depois de tudo volta para a Inglaterra e deixa a amada em sua terra, com seu povo, sem nada lhe dar em troca de tudo o que fizera. O brasileiro é produto de três raças tristes, não tem ânimo para vencer na vida. Já o norte-americano, vê no trabalho o progresso e o motivo do seu sucesso.

Discute-se a questão se realmente existem fontes apropriadas para discutir a história. Analisa-se a questão da educação de um e de outro. Os norte-americanos alfabetizam-se para ler a Bíblia, tem espírito colonizador e não conquistador e, não podemos esquecer-nos da busca pela glória. Já os portugueses tinham como motivador a cobiça pelo ouro e também o lucro. As bandeiras aqui mais mataram que ajudaram a povoar nossas terras. Então, na América Latina o Bandeirante se sobrepôs ao Pioneiro diz o autor. Entretanto, este pensamento pode ser considerado um pouco suspeito. Análises feitas posteriormente apontam explicações e dizem que houve colonização e exploração em ambas as partes do continente Americano. Por maior que fosse o desejo de riqueza fácil do colonizador português e a exploração dos recursos brasileiros, houve sim, uma colonização de fato, mesmo que incipiente. Assim como podemos presenciar, além de uma colonização mais organizada e digamos, sólida, houve da mesma forma exploração econômica das riquezas na Nova Inglaterra.

Nas últimas partes do livro, Viana Moog se detém na questão dos símbolos e a sua importância para os discursos que visam dar uma identidade a um determinado grupo e ser o exemplo perfeito que deve ser seguido por todos; bem como suas implicações políticas que os interesses que perpassam esses mitos fundadores. Volta-se ao título do livro “Bandeirantes e Pioneiros” e o autor nos mostra como esses dois personagens foram reelaborados para fins políticos e distorcidos para darem conta de uma realidade que não era a sua. No Brasil, o bandeirante durante muito tempo foi considerado o grande herói nacional. Graças ao seu espírito aventureiro e valente, dilatou nossas fronteiras, achou ouro e povoou a colônia portuguesa. Ganhou nome de praças, ruas e viadutos como forma de demonstração do respeito que nosso povo tem por essas bravias figuras. Pouco, ou quase nada se disse da extrema violência com que estes bandos agiam, na busca de riquezas e escravos. As milhares de mortes e o desaparecimento de dezenas de tribos indígenas pelas mãos dos bandeirantes quase não apareciam nos livros escolares à época em que a obra de Moog foi escrita.

O mesmo ocorreu com a figura do Pioneiro. Até a independência norte-americana o Pioneiro era tido como o símbolo da Nova Inglaterra. Trabalhador, religioso e sério. Contudo, outras duas figuras vão surgindo, sobrepondo-se à este Pioneiro. Principalmente após a independência e a fundação dos E.U.A será mais notória a participação social dos fazendeiros escravagistas do sul – os farmers – e os liberais capitalistas do norte – ianques. Com a Guerra da Secessão (1861 a 1865) entre o norte e o sul, os pioneiros vão ser empurrados para o oeste caindo no esquecimento. Com a vitória dos ianques na Guerra Civil Americana, este Pioneiro vai ser resgatado com algumas alterações no seu simbolismo. Antes da sua ianquização o trabalho era visto como parte fundamental da religião. Trabalhava-se para Deus, ou seja, possuía um caráter antes religioso que econômico. Neste sentido, os ianques se apoderaram desta figura, distorcendo o valor real do trabalho para o Peregrino. Essa ianquização alterou o discurso e fez com que o único objetivo do trabalho obstinado é o sucesso e o lucro.

Viana Moog pode ser considerado pioneiro, com o perdão do trocadilho nos estudos relacionados ao Brasil e Estados Unidos. Mesmo que muitas de suas teorias sejam ultrapassadas nos dias de hoje, para a época em que Bandeirantes e Pioneiros foi escrito, em 1954, suas percepções sobre as duas culturas foram um grande avanço para as interpretações do que é o Brasil e o povo brasileiro. Uma obra fundamental para entendermos um pouco mais sobre o nosso país e nossos vizinhos do norte.


segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O dedo na Ferida

Texto publicado no jornal Gazeta do Sul em 07/01/2011



Primeira semana de governo Dilma e já notamos mudanças no novo cenário político brasileiro, bem como os grandes desafios da nova administração. Ex-guerrilheira na luta de resistência contra o regime ditatorial instaurado no Brasil em 1964, a nova presidenta Dilma Rousseff incumbiu a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), nomeada Ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, de uma missão desgastante, porém importante: promover a instalação da chamada “Comissão da Verdade”, que visa investigar as prisões, torturas, mortes e os desaparecimento de presos políticos durante os “Anos de Chumbo”.

O novo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, escolhido pela presidência, o General José Elito Siqueira, afirmou na última segunda-feira que “a existência de desaparecidos políticos durante a ditadura militar não deve ser motivo de vergonha, mas tratado como ‘fato histórico’. Mostrando uma resistência dos setores mais conservadores da sociedade brasileira em mexer no passado e revelar o que se passou durante os 21 anos de ditadura no Brasil. Desta maneira, podemos reduzir as mortes patrocinadas pelo Estado brasileiro a mero “fato histórico”? Poupe-me Senhor General!

Muitos que não querem revirar este “vespeiro”, falam em revanchismo e que deveríamos pensar também nos militares mortos pelos guerrilheiros, e punir de mesma forma os “subversivos” que lutaram contra o Estado Brasileiro. De ambos os lados houve mortes, infelizmente. A resistência armada, por mais pacifista que sou, torna-se, em determinadas situações o único meio de luta contra um regime. O Estado Brasileiro, com todo o seu aparelhamento “legal” prendeu, torturou, exilou e matou centenas de pessoas, sem direito de defesa. Os “subversivos” deveriam ficar parados em casa “com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar ?” Se formos por esta lógica, o ex-presidente francês, General De Gaulle, um dos líderes da resistência francesa, também deveria ser condenado por resistir à investida nazista em seu país. Ou até Bento Gonçalves poderia ser considerado um dos maiores assassinos da história do Rio Grande do Sul, por comandar uma guerrilha e matar vários brasileiros em 10 anos de guerra civil.

Vários países da América Latina, após a redemocratização iniciaram a abertura de seus arquivos, investigando e identificando os responsáveis pela utilização do Estado para perseguição e assassinato de seus compatriotas, por motivos políticos. A Argentina já julgou muitos de seus generais e torturadores. O Chile condenou Pinochet à prisão. E o Brasil? Até quando negaremos nosso passado recente?Porque tanto medo da abertura dos arquivos da Ditadura? Quem não deve, não teme. Só se possuírem motivos para este temor...

As ideologias da época em questão, não cabem neste pequeno texto. Desejo que leiam estas frases como um apelo de um futuro historiador, que vê no esquecimento uma grande forma de se praticar a injustiça. Todos devem ter direito à memória, principalmente as famílias desses desaparecidos. Abrir os arquivos da ditadura é preencher uma lacuna que muitos resistem em fechar. É nosso direito saber sobre a nossa História e nossas feridas. É direito desses desaparecidos, terem um túmulo com seus nomes gravados.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Historiador : advogado do Diabo.


Carlo Ginzburg diz que historiador deve agir como advogado do diabo


O historiador italiano Carlo Ginzburg, 71, autor de "O Queijo e os Vermes" e um nome central da vertente chamada micro-história, defendeu anteontem, em sabatina promovida pelaFolha, uma postura combativa ao lidar com pesquisas históricas.

Para ele, o historiador deve agir como um advogado do diabo, apresentando questões difíceis às hipóteses. "Nenhuma afirmação pode ser considerada definitiva", disse. "Mas o ônus [da prova] é de quem suspeita."

Ele veio ao país promover o relançamento do livro "Investigando Piero" (ed. Cosac Naify), em que propõe uma nova interpretação para o quadro "A Flagelação de Cristo", do renascentista italiano Piero della Francesca.

Na sabatina, sugeriu uma leitura detida de fatos e circunstâncias, que chamou de "olhar lento, mas não tedioso", em contraposição a uma sociedade mergulhada em "imagens inflacionadas".

Ginzburg foi entrevistado pelo crítico literário e diretor de programação da Flip, Manuel da Costa Pinto, e pela professora de história da USP Laura de Mello e Souza. A mediação foi do editor da Ilustríssima, Paulo Werneck. Leia a seguir os principais trechos da conversa.



"Investigando Piero"

Este livro marcou uma guinada inesperada na minha pesquisa. Em um museu de Siracusa [Itália], vi um vaso grego, um gesto de batalha, que identifiquei com o traço de Piero della Francesca. Estava posto um problema de semelhança morfológica entre elementos não relacionados.

"Flagelação"

É um quadro muito anômalo porque a flagelação se dá no pano de fundo, Cristo aparece muito pequeno. A cena também está construída sobre uma perspectiva rigorosíssima. Também aparece a coluna venerada por ser onde Cristo foi acorrentado.

Fui ver a coluna e medi a relação entre a altura real de Cristo e a altura da coluna, uma proporção de um para dez, divina. Tentei reconstituir a densidade da experiência.

Olhar lento

Vivemos numa sociedade em que as imagens são inflacionadas. Por isso é importante reafirmar a densidade de uma imagem como essa, com um olhar lento. É a arte de ler lentamente, como dizia Nietzsche. Nesse caso, é a arte de ver lentamente. Gesto lento, mas não tedioso.

Provas

Quando é que podemos dizer ter provado algo? Seria útil que a linguagem nos oferecesse uma escala de provas --algo como prova de força quatro, cinco--, que pesasse o ônus da prova. O ônus é de quem suspeita. Mas nenhuma afirmação histórica pode ser considerada definitiva: toda afirmação é verdadeira até que se prove o contrário.

Advogado do diabo

A prova é como o advogado do diabo. Não é possível ser audaz e prudente ao mesmo tempo, só se você se desdobrar, uma parte formulando hipóteses com audácia, e a outra, apontando dificuldades e requerendo provas.

O advogado deve fazer as perguntas más, como se houvesse uma prova correta, criando um antagonismo.

Lévi-Strauss foi um advogado do diabo. Quando li pela primeira vez seu "Antropologia Estrutural", foi um encontro com um mundo muito distante. Foi esse desafio à história que me fascinou em Lévi-Strauss. Nos anos 70, o diálogo era intenso entre historiadores e antropólogos.

A antropologia, para mim, foi muito importante. Existe ainda hoje isso do antropólogo como figura inquisitiva.

Micro-história

Insisto que o termo micro não tem a ver com pequenez, com aquilo que esteja à margem dos objetos. Diz respeito a um olhar analítico, microscópico. É possível ver a perna de uma mosca no microscópio ou a textura da pele de um elefante. Esse elemento me é caro. Busco o excepcional, aquilo que nos dá um quadro da anormalidade.

A anomalia, por definição, contém a norma, é mais rica do que a norma do ponto de vista cognitivo. Mas eu não busco exaltar a anomalia.

Filologia

A superfície do texto registra tensões subterrâneas, como um sismógrafo. [Usar a técnica da leitura lenta] É como encostar a orelha no chão, como um índio que sente o barulho que vem de longe. Dentro de um texto, há sempre uma pluralidade de vozes e situações. É possível colher ali traços da realidade que está fora dele.

Google

[Os historiadores] Robert Darnton e Roger Chartier se preocupam com as implicações políticas e legais associadas a projetos do Google, que preveem a digitalização de uma quantidade enorme de livros que pertencem a bibliotecas públicas por uma instituição privada.

Eles veem no Google ferramentas de controle do usuário. Mas acho que ele pode ser usado contra as intenções de quem o domina. Na Revolução Francesa, o livro foi usado como instrumento de luta contra o controle. A possibilidade de um uso imaginativo, subversivo do Google não deve ser descartada.

Anomalia contemporânea

Não devemos partir das boas velhas coisas, dizia [Bertolt] Brecht, mas das malvadas coisas novas. Precisamos usar aquilo que nos ataca e nos enoja. Ver o horror, a feiura da realidade é difícil, mas devemos tentá-lo.


Retirado de: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/839416-carlo-ginzburg-diz-que-historiador-deve-agir-como-advogado-do-diabo.shtml